No Brasil, 90% das empresas têm perfil familiar, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além de responder por mais da metade do PIB, as empresas familiares também empregam 75% da mão de obra no País. Diante de tamanha relevância à nossa economia, é preocupante o que aponta um estudo do Banco Mundial, segundo o qual 30% das empresas familiares chegam à 3ª geração e apenas metade disso, ou seja, 15%, sobrevivem a ela.
Mas afinal, qual ou quais os principais obstáculos à longevidade das empresas familiares?
Segundo o estudo, o apego e centralização excessiva de poder, a sobreposição de papéis, a dificuldade de reconhecer e trabalhar as próprias limitações pessoais e a falta de um planejamento sucessório adequado encabeçam a lista.
Creio que todos já tenhamos ouvido aquele velho ditado: “é o olho do dono que engorda o gado”, certo?
Este é, sem dúvida, um dos paradigmas típicos de empresas de controle familiar e multifamiliar, cuja gestão é fortemente apoiada na supervisão direta dos donos e marcada por um processo decisório altamente centralizado e intimamente influenciado pelos valores pessoais da família empresária. Em negócios familiares, raramente a autoridade pessoal do “dono” se submete ou cede espaço à autoridade institucional, expressa nas regras, políticas, estruturas de governo e processos de negócio.
Até certo ponto, é saudável, natural e até esperado que os sócios, sobretudo os da geração fundadora, tenham forte tendencia à centralização, afinal, foram eles que idealizaram, construíram e levaram o negócio até aquele patamar.
Um segundo motivo, bem menos racional que o primeiro, que também explica a centralização excessiva em empresas familiares, é o apego emocional dos sócios ao negócio que, em muitos casos, acaba por se (con)fundir com a missão de vida e legado dos fundadores, em suas próprias perspectivas.
Mas essa interdependência – do negócio para com o “dono” e do dono para com o negócio – é uma faca de dois gumes. Se, por um lado, ela traz vantagens como o forte alinhamento cultural, maior proximidade entre funcionários e tomadores de decisão, celeridade e desburocratização do processo decisório, relações mais humanizadas, sentimento de lealdade para com a organização e uma de visão de longo prazo, mais alinhada à agenda dos sócios do que à agenda executiva, por outro, ela cria um verdadeiro fardo sobre o gestor encarregado de tomar todas as decisões. E pior, ela impõe gargalos ao crescimento do negócio, desfavorece a diversidade e inclusão, compromete o desenvolvimento de novos líderes e pode, inclusive, levar o negócio a uma morte prematura, caso esta ambiguidade evolua para uma miopia que comprometa o planejamento sucessório.
Em duas décadas de atuação como conselheiro, consultor e professor, já presenciei diversos casos em que negócios relevantes e bem-sucedidos, como grandes redes de varejo, começaram a se estagnar e perder relevância, competitividade e mercado pela simples incapacidade de delegação de seu fundador. O fundador se recusava a implantar melhores práticas de governança corporativa por, literalmente, não querer abrir mão de poder. Com isso, acabou se vendo abrigado a abrir mão de algo bem mais valioso: o crescimento do próprio negócio, que deixou de acessar fontes mais baratas de financiamento e novos mercados. Esse foi o preço a pagar.
Outro forte estímulo à centralização, também característico de empresas de controle familiar e multifamiliar, é a já mencionada sobreposição de papéis entre sócios, familiares e administradores, onde uma mesma pessoa é obrigada a usar vários “chapéus” em momentos distintos, como ao atuar no Conselho de Administração, na Reunião de Sócios e no Conselho de Família.
O grande desafio que se impõe nestes casos é que, ainda que acumule os três “chapéus”, a pessoa deve se conscientizar que cada um possui prioridades e atribuições próprias, e que as decisões devem ser tomadas à luz da autoridade do “chapéu” que está usando, isto é, compartilhadas com as pessoas apropriadas, no fórum correto e com considerações pertinentes àquele chapéu.
Ao delegar e endereçar cada decisão a ser tomada aos fóruns apropriados, em função da sua alçada e natureza – se societária, administrativa ou familiar – as boas práticas de governança tendem a qualificar a tomada de decisão, tornando-a mais criteriosa e estratégica à luz dos interesses de longo prazo da organização. Além desta vantagem central, ao criar confiança entre a organização e o mercado, o mesmo retribui, atribuindo maior valor (valuation) à organização, que passa a contar com menores custos tanto de transação quanto de capital e a ser mais atraente a recursos financeiros e não financeiros.
Caso a empresa considere atrair um fundo de private equity ou acessar recursos no mercado de capitais, por exemplo, uma boa estrutura de Governança Corporativa acelera e facilita tal iniciativa.
Quando se trata de recursos não financeiros, as boas práticas de governança também são vitais para o recrutamento e retenção de talentos, sobretudo em empresas de controle familiar e multifamiliar – naturalmente, mais suscetíveis a pessoalismos – ao conferir critérios objetivos e meritocráticos aos processos de ingresso, avaliação, remuneração, bonificação, promoção e sucessão.
Caso seja opcional a atuação de familiares na empresa, por exemplo, as boas práticas de governança são unânimes em determinar que eles devem submeter-se exatamente às mesmas regras e políticas aplicáveis aos demais funcionários da organização.
Como vemos, o sucesso ou fracasso de um negócio não reside no seu tipo de controle e tampouco em se ter ou não membros da família ou sócios atuando no negócio. O que distingue empresas longevas de sucesso é o fato de possuírem e praticarem estruturas de governança e gestão profissionalizadas.
Por “profissionalização” me refiro à alocação de indivíduos com a vivência e competência adequadas para ocupar posições de liderança ou técnicas, independente de seu vínculo familiar ou societário. Assim, proprietários e seus familiares podem, sem dúvida, exercer funções na empresa, desde que tenham capacitação técnica e comportamental compatíveis e que consigam exercê-las sem misturar sua origem societária/familiar com suas responsabilidades no negócio.
Vale dizer que incorporar boas práticas de governança ainda requer certa dose de desapego e pode ser um tanto quanto doloroso para os fundadores, já que a despersonalização da tomada de decisão significa também que a governança transfere poder das pessoas para a instituição, ou seja, que ela substitui gradativamente a autoridade pessoal dos familiares pela autoridade institucional dos fóruns, estruturas de governo, políticas e regras de negócio.
Como afirma Henry Mintzberg em seu livro “Criando Organizações Eficazes”, este é um processo natural de amadurecimento e crescimento organizacional. Segundo a obra, existem distintas formas de coordenação do trabalho que se sobressaem de acordo com o estágio evolutivo e estruturação do negócio. A primeira já foi citada aqui: a supervisão direta da alta administração. Mais centralizadora, simples e embrionária, ela prevalece nos estágios iniciais de qualquer negócio ou em startups que se encontram entre as fases de validação e tração. As outras, prevalecentes em negócios mais maduros e consolidados, são as três formas de padronização – das habilidades, dos processos de trabalho e dos resultados. Ora, a padronização é, em última instância, uma forma de delegação, e, como vemos, uma marca de negócios que superaram seus estágios iniciais, amadureceram e cresceram de forma coordenada.
Sem delegação, as pessoas não recebem autonomia e não são desafiadas, portanto, não há estímulo ao desenvolvimento. Isso compromete a formação de novos líderes, o crescimento, a sucessão e perpetuação do negócio. Por outro lado, ao impor desafios, dar autonomia, responsabilizar, cobrar e reconhecer os resultados, a delegação favorece o crescimento das pessoas e, por conseguinte, do negócio como um todo, tornando-se sinônimo de longevidade e visão, de pensar na organização para além da geração do fundador.
Todo consultor, professor e conselheiro é, acima de tudo, um agente de mudança e, como tal, tem seu foco em aspectos que possam ser aperfeiçoados, levando os negócios a um novo patamar e as pessoas e profissionais a um novo nível de satisfação e realização. Com este olhar, minha recomendação aos donos e seus descendentes é que façam uma profunda reflexão sobre a relação que mantém com seus negócios em busca de questões de foro íntimo que possam estar influenciando negativamente em seu governo, gestão e sucessão.
Como costumo dizer, por mais contraintuitivo que possa parecer “mexer em time que está ganhando”, quando o negócio possui uma visão desafiadora, nem sempre os caminhos que o levaram até seu estágio atual serão os mesmos que o permitirão alcançá-la.
Podemos escolher que caminhos trilhar, mas não as consequências das nossas escolhas. Por isso, ainda que doa e seja difícil, é preciso aprender a confiar e delegar, sob pena de, no futuro, não haver mais um negócio para chamar de “seu”.
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